Intenções

Felipe Ferreira
8 min readJan 5, 2021
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Caro leitor, divido com você a opinião de que o mundo em que vivemos nos oferece doses diárias suficientes de realidade. E que, por isso, seria conveniente que este fosse um espaço de alento; quem sabe, de ficção leve; de futilidades tratadas de forma amena. Mas não. Nada disso se acha aqui, caro leitor.

Não tenho outra preocupação senão ser fiel às experiências da personagem que motivou este texto. Experiências que, como se verá, ora são expressadas por ela mesma de maneira subjetiva, ora dão conta de uma porção de sentidos mais amplos que se comunicam com a vida de pessoas comuns, como eu e você, em nossas pelejas cotidianas.

É justamente no encontro desses sentidos gerais que está a chave de leitura deste texto. Pois as vivências particulares da nossa personagem decantam sentimentos que, a meu ver, são universais, e separam o sólido sobreviver do líquido viver, próprios dessa mistura louca que chamamos de vida.

Originalmente, a matéria deste texto não visava à apreciação popular, mas sim à análise. Não a análise de um revisor, editor, parecerista ou afins, mas a de um psicólogo, que recomendou a escrita como exercício terapêutico a seu cliente, que, por gosto e por ofício, consegue externar melhor suas demandas escrevendo sobre elas. Este mesmo cliente também é meu amigo, a quem agradeço a confiança em me ceder suas reflexões e intimidades, após rica conversa sobre elas.

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Vale esclarecer que nenhum sigilo profissional foi violado. Fui autorizado por meu amigo, que espontaneamente me apresentou suas anotações antes de apresentá-las ao terapeuta, a usá-las numa de minhas histórias, desde que ocultada a sua identidade. No entanto, as anotações dele são, por si, uma história que merece ser lida: algo como um manifesto. Dito isso, justifico o motivo de nos determos exclusiva e integralmente em suas linhas.

A partir do que se vai ler, você logo perceberá que Pedro (nome fictício escolhido por meu amigo) está cansado demais para se importar com qualquer impressão que se desprenda da leitura que você fará dele, caro leitor. Contudo, tendo a acreditar que você, assim como eu, simpatizará com ele e se verá representado em algumas das passagens que ele expõe — arrisco dizer, boa parte delas.

Sem mais demora, daqui em diante, é a voz de Pedro que você deve ouvir enquanto lê, caro leitor. E, para não interromper a reflexão na qual, estou certo, você mergulhará no transcurso da leitura, aqui me despeço.

Baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim.

O trecho é de Transformações, conto de Caio Fernando Abreu, e expressa tão bem o que estou sentindo, que tudo o mais que você lerá adiante me fará parecer redundante.

Estou cansado até os ossos. Porém, vivo [texto escrito em maio de 2020, período em que a primeira onda da pandemia de Covid-19 assola o Brasil]. Mas, definitivamente, cansado. Cansado e com menos cabelo. E mais somatizado. Dessa vez foi o estresse; e a oscilação de humor; e a ansiedade; e a angústia; e a incerteza; e a insônia; e as preocupações; e a tireoide, que desregulou, assim como a cabeça; e a coluna, que não é de hoje, mas piorou; e eu me sentindo avulso e desorientado. É possível alguém nascer com cansaço crônico? Se não, deve ser coisa no sangue [inspiração profunda seguida de expiração e suspiro compridos].

2020 tinha tudo para dar certo: conclusão de uma década; data redonda; número par. A maioria das pessoas segurando o rojão na lida do dia a dia à moda brasileira. E mesmo assim felizes, equilibrando boletos e sonhos parcelados em mais boletos.

Você também tem a impressão de que alguns anos parecem menores ou maiores que outros? 2020, por exemplo, foi curtíssimo. Durou de janeiro a março. O resto foi tentativa-erro, erro-tentativa. Um ano parecido com uma foto mal tirada contra a luz, em que há muita sombra e pouca clareza.

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Decidi não fazer planos para 2021. Tenho apenas intenções. Intenção de preferir o simples, em vez do complicado; o menos, em vez do mais; o necessário, em vez do excesso; o prático, em vez do complexo; o factível, em vez do improvável; a leveza, em vez da cobrança; o livro, em vez do celular; o silêncio, em vez do barulho; a viagem, em vez do móvel planejado; a calma, em vez da perturbação; chá, em vez de café.

Ansiedade misturada com ânsia misturada com asfixia. Esses sentimentos próprios de quem se ocupa demais me sequestravam do presente — passado imperfeito. A mente cansada leva uma vida cansada. Não posso ser alguém que, antes dos 30 anos, não vê a hora de se aposentar, e que prefere saltar para o fim da história, em vez de apreciar a leitura. Ou alguém que, Deus me livre, só desperta depois que um diagnóstico ruim anuncia o abreviamento inesperado da vida.

Decidi que não concorro mais comigo mesmo; que não me puno; que não me comparo; que não me saboto; que não me rebaixo; que não aceito menos do que mereço; que não correspondo às expectativas alheias por reconhecimento, simpatia ou vaidade; que não amorteço contrariedades com álcool ou seja lá o que for; que não me maquio com filtros; que não negligencio meu descanso; que não rejeito meus defeitos nem meus afetos; que não disfarço minhas insatisfações; que não censuro meus sentimentos; que não escondo meus vícios, manias, ignorâncias e erros; que não digo sim para o que devia ser não; que não troco bem-estar por salário, ar fresco por Wi-Fi, ou novas experiências por estabilidade.

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Não quero ser o tipo de pessoa que transforma a vida em trabalho, concluindo serviço após serviço, confinada num cômodo, sempre com pressa, sempre correndo, queixosa de falta de tempo, impaciente pelo próximo passo, pelo próximo curso, pelo próximo projeto, pela próxima promoção, pelo que vem depois. Privada do presente, do aqui e do agora.

Não quero ser o tipo de pessoa que antecipa problemas ao ouvir notificações no celular. O tipo de pessoa que nunca desliga, nunca se desconecta. Ocupada demais para viver. Reativa, em vez de ativa. Não quero ser o tipo de pessoa que se arrepende do que não fez e, por isso, se amargura. O tipo de pessoa que vê no rosto jovem de um desconhecido as possibilidades que deixou escapar, e que só na velhice enxerga a vida a partir da perspectiva do que poderia ter sido, mas não foi. O tipo de pessoa que se cansou de si mesma e de estar sempre cansada.

Não quero ser a pessoa que Byung-Chul Han retrata em seu livro, Sociedade do Cansaço, e que é resumida nas passagens a seguir.

A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação.

O sujeito de desempenho concorre consigo mesmo e, sob uma coação destrutiva, se vê forçado a superar constantemente a si próprio. Esta autocoação, que se apresenta como liberdade, acaba sendo fatal para ele. A coação do desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação.

Na sociedade do trabalho e do desempenho de hoje, cada um carrega consigo um campo de trabalho. A característica específica desse campo de trabalho é que cada um é ao mesmo tempo detento e guarda, vítima e algoz, senhor e escravo. Nós exploramos a nós mesmos.

Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis do desempenho e do botox. Assim, hoje, estamos por demais mortos para viver, e por demais vivos para morrer. Vista a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida. O que torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho. O excesso da elevação do desempenho leva a um infarto da alma.

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Alma infartada não soa bem. 2020 intensificou a produção de cardiopatas da alma. Mas também proporcionou a eles, nos quais me incluo, um choque de realidade que comprovou que a maioria de nós sobrevive, em vez de viver. Mas a verdade é que uma vida, que considero boa, não deve ser medida por quanto, mas como se viveu. Na contramão do que foi incutido na nossa cabeça, o como-se-vive tem mais a ver com o que se é, do que com o que se tem. Novamente, Sociedade do Cansaço:

A economia capitalista absolutiza a sobrevivência. Ela se nutre da ilusão de que mais capital gera mais vida, que gera mais capacidade para viver. O hipercapitalismo atual dissolve totalmente a existência humana numa rede de relações comerciais. Já não existe nenhum âmbito da vida que consiga se eximir da degradação provocada pelo comércio. O hipercapitalismo transforma todas as relações humanas em relações comerciais. Ele arranca a dignidade do ser humano, substituindo-a completamente pelo valor de mercado.

O que me faz refletir: quanto vale meu tempo, principalmente o que deixei de passar com quem importa para mim? Quanto vale um minuto da minha vida, ou oito horas do meu dia? Quanto vale minha força de trabalho, minhas ideias, meus pensamentos? Quanto valem os sonhos que não sonhei? Quanto eu valho? Qual é a justa medida entre ser e ter? Se a virtude está no meio, como reza o aforismo aristotélico, onde está o meio? Quem sabe, nele, eu me ache inteiro.

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Felipe Ferreira

Jornalista de formação. Publicitário de atuação. Gosta de escrever e brincar de ser várias gentes numa pessoa só. Não segue o script.