Deixar ir

Felipe Ferreira
6 min readDec 8, 2019
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O passado é insistente. Ele inflama o remorso de quem bateu e o ressentimento de quem apanhou. Passado demais é coisa de quem não se perdoa e deixa a culpa rançosa amargar os afetos, perverter os desejos, minar o ânimo e criar inimizades alimentadas contra si mesmo. Aquele rolê tóxico de focar nos próprios traumas, vícios, erros e frustrações. Quem nunca?

Chega uma hora a gente precisa se livrar do peso extra, se desapegar e parar de colecionar crise de ansiedade, nó no pescoço, insônia, tensão nos ombros, excesso de gordura, acesso de gastrite nervosa e oscilação de humor. Fácil não é. Mas a fixação no passado rouba da gente, além da saúde, a disposição de investir no agora e de trabalhar num futuro mais leve.

É desperdício de energia querer mudar o que não pode ser mudado. Editar o título não altera o conteúdo da história; talvez a torne mais interessante do ponto de vista de quem a conta. “Dizemos todo tipo de coisas a nós mesmos para explicar o passado. Tanto que nossas próprias invenções, se as repetirmos com frequência, se tornam verdade na nossa cabeça e na de todos os outros.” /1/

Acelerei dos 18 aos 30 sem ter aproveitado a liberdade da idade. Sem ter metido o louco mesmo, sabe? Sem sentir a adrenalina que a confiança típica do jovem injeta no sangue. Sem me deixar levar pela sorte de quem se permite e, de quebra, se safa com experiência pra agregar. “O destino destina, mas o resto é comigo.” /2/

Descobri cedo que é cada um por si e deus… existe? Adulto, responsável e desacreditado novinho demais. Agora mesmo tô passando pela fase jovem-pra-ser-velho-e-velho-pra-ser-jovem: adolescência do adulto. “Eu rezo pedindo a Deus que não espere mais eu ser legal para ser legal comigo, porque eu tô esperando ele ser legal comigo para ser legal. Aí eu penso que ele já é legal comigo e que, talvez, eu já seja legal com ele. E que tá tudo bem.” /3/

Assumir todas as responsabilidades pra si e querer ser autossuficiente não te torna mais durão. Só te torna mais cansado, apático, encouraçado e acrescenta uns graus na curva da escoliose. Autossuficiência vai na contramão da nossa natureza sociável. Precisamos uns dos outros, mesmo que a ideia desagrade.

Gosto do texto ‘Tabacaria’, do Fernando Pessoa. Eu o li por indicação de um Amigo. O texto é uma autocrítica sensata, quase seca. Trata da autoconsciência. Separei trechos.

“Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Crer em mim? Não, nem em nada.
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.”

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Autoconsciência não deixa as coisas mais fáceis, mas as deixa mais claras. Sorte e fardo dos que a tem. Autoconsciência demanda o amadurecimento que resulta da soma dos erros e acertos acumulados ao longo da vida. Nossa vida não é breve como a das borboletas nem longeva como a dos carvalhos. Mas, como todo ciclo, ela tem suas feiuras, belezas e fases. Autoconsciência tem a ver com reconhecê-las. Viver tem a ver com ser imperfeito.

“Depois apareceu uma borboleta negra, laranja e azul esvoaçando sem rumo e alguém disse que elas viviam apenas vinte e quatro horas, que não precisavam trabalhar nem montar um lar, o lar eram as flores onde iam pousando descuidadas, depositando seus ovos, e os filhos que se virassem sozinhos. Mas antes alguém lembrou, ou ninguém, talvez todos tenham pensado sem dizer, antes foram crisálida, larva lenta, feia, cascuda, escura, fechada sobre si mesma, elaborando em silêncio e desbeleza as asas de mais tarde.” /4/

O mundo tem pressa. Ele impõe ritmo. Nossas obrigações urgem. E nós? Nós seguimos… Do jeito que dá… Uma maioria desacreditada… Automáticos… A objetividade da esteira de produção solapando nossa subjetividade. Viúvos da esperança. Passado inócuo. Presente inseguro. Futuro incerto.

Comemos rápido. Dormimos pouco. Trabalhamos demais. Batemos metas. Nos distraímos fácil. Negligenciamos relações. Afrouxamos laços. Subestimamos sentimentos. Relativizamos deveres. Absolutizamos direitos. Somos convenientes. Somos coniventes. Somos a geração da performance. Somos da época do esgotamento generalizado, do cansaço crônico. Somos do tempo das aparências. Somos devotos da imagem. Somos especialistas da técnica. Somos ignorantes do trato. Não conjugamos mais a segunda nem a terceira pessoa. Defasamos a “nós”. Singulares demais.

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O recurso pra essa diluição do ser humano talvez esteja no ato revolucionário de fazer aquilo em que se acredita de verdade, de insistir no sonho. Ainda que isso não leve você ao posto de CEO de uma startup-criada-com-base-nos-fundamentos-do-empreendedorismo-alguma-coisa-ponto-zero-e-nutrida-pelas-estratégias-infalíveis-dos-gurus-do-marketing-digital. A não ser que este seja de fato seu objetivo. “Não podemos ser tudo para todos e continuar fiéis a nós mesmos.” /5/

Nosso excesso de autocobrança é reflexo da sociedade do excesso em que vivemos. Isso inclui o excesso de culpa. Somos exigidos demais. Por isso, se existe algo que podemos fazer por nós é nos culpar menos e alinhar nossas expectativas com as possibilidades de realizá-las. Afinal, a maneira como pensamos, os contextos, as pessoas, nossa maturidade mudam com o tempo. Agora dispomos de meios dos quais não dispúnhamos antes. Nem tudo depende de nós. Nem sempre é por falta de tentar.

Levar isso em conta é importante para não deixarmos de acreditar em nós mesmos nem no outro nem na vida nem no bem, como fez o personagem Camilo: “Eu ainda não era esta hiena. Tinha um mundo inteiro para viver antes que acabasse. Gostava do Júlio Verne, do Henry Haggard, das voltas ao mundo e d’A ilha do tesouro. Ficava sonhando como devia ser a estrada para Minas Gerais (tinha ouro? tinha escravos ainda, bois que pensam, árvores com espíritos, reis-salomões?) e fazia planos de ser Deus para criar um planeta. Como é que se inventava o cheiro do café? As cores da pele? Diferentes civilizações? Eu tinha amor pelos homens. Hoje acho bobo.” /6/

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Parafraseando Hannah Arendt, o mal é banal, ordinário, medíocre; enquanto o bem, este sim é radical, incomum, rebelde. Não estamos acostumados a nos tratar bem, a nos cuidar, a nos fazer gentilezas. Mas se minhas considerações e as das referências abundantes que usei até aqui estiverem certas, essa situação pode mudar. E é bom que mude. Ou não. Há quem esteja bem como está. Meu encorajamento é que sejamos radicalmente ousados, autenticamente incomuns e descaradamente rebeldes.

“_É pecado sonhar?
_Não, Capitu. Nunca foi.
_Então por que essa divindade nos dá golpes tão fortes de realidade e parte nossos sonhos?
_Divindade não destrói sonhos, Capitu. Somos nós que ficamos esperando, ao invés de fazer acontecer.”
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Então sonhemos. Então façamos. Então insistamos: no eu, no tu, no ele e, sobretudo, no nós.

/Referências/

/1/ Trecho de diálogo da série The Crown, Ep. 1, III Temporada.
/2/ Do poema ‘Prelúdio’, de Miguel Torga.
/3/ Do livro ‘Tô com vontade de uma coisa que eu não sei o que é’, p. 25, de Tati Bernardi.
/4/ Conto ‘Zoológico blues’, de Caio Fernando Abreu.
/5/ Da mesma referência anterior de The Crown.
/6/ Do livro ‘O amor dos homens avulsos’, p. 22, de Victor Heringer.
/7/ Trecho da minissérie Capitu, adaptação do clássico Dom Casmurro, de Machado de Assis.

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Felipe Ferreira

Jornalista de formação. Publicitário de atuação. Gosta de escrever e brincar de ser várias gentes numa pessoa só. Não segue o script.