Átomo de homem

Felipe Ferreira
3 min readJan 8, 2022
O ator Christian Bale como Patrick Bateman, protagonista do filme “Psicopata Americano” (2000).

A primeira vez que ouvi “Por que você não vira homem?” foi esquisita. Com dez anos, a frase teve mais efeito reflexivo do que moral. Catei a pergunta feita por um moleque de no máximo treze, no portão da escola, e emendei uma reflexão. (Bicha, no geral, é reflexiva por natureza e ligeira desde criança-viada).

“Do que é feito um homem?”, “Como faz pra ser um?”, “O que é ser homem?”, pensei, num segundo daqueles que parecem um tempão. Em seguida, mandei o menino pra puta que o pariu — não me orgulho disso, nem me arrependo —, encorajado que fui pela escolta de duas amigas e um amigo que, depois soubemos, se descobriu bicha também. (Bicha não anda só).

Homem, cis, hétero, branco, proprietário, marido, pai, provedor, cristão, monogâmico, viril, urbanizado, intelectualizado, europeizado, bem-sucedido. Quem é esse homem? Por que ele se torna o padrão, a norma? Como a imagem desse homem se fixa e passa a funcionar como modelo? Quando esse homem se torna o eixo em torno do qual valores são definidos e leis são criadas? O que faz com que o nível de semelhança a esse homem seja proporcional ao prestígio e à influência que se têm? Por que todos temos de ser esse, que chamo de homem-instituição?

O que me falta pra ser esse homem-instituição? Esse homem que, nos disseram, é o único possível. Me falta densidade nos músculos e nos ossos. Me faltam quinas na mandíbula. Me falta certa previsibilidade. Me falta grave e volume na voz. Me falta o cheiro amadeirado e acre de quem está acostumado a marcar território e a ocupar espaço. Me falta ambição, facilidade de se ressentir e necessidade de se impor. Me faltam certezas, disposição pra competir e desejo de dominar. Me faltam segurança, garantias, reconhecimento e respeito. Me falta interesse em performar força, poder, tesão, produtividade, autoridade e potência. Me falta a liberdade de não ter de me explicar.

Mas aonde quero chegar? Todo esse falatório pra dizer que homens não prestam? De jeito nenhum. Se o motivo fosse esse, cairíamos no erro que queremos evitar: supor que exista uma “essência” do homem. Essa essência não existe. Não me refiro aos homens (no plural), mas a esse homem-instituição que transformamos em símbolo e em estereótipo. Esse homem que reafirmamos até hoje e que é imitado por muitas bichas e mulheres inclusive. Aqui vale a ressalva de que ser esse homem-instituição não implica nenhum juízo de valor em si. Entretanto, ter de ser apenas esse homem-instituição, isso é no mínimo uma interdição do sujeito e um atrofiamento das suas potencialidades — de nós, sujeitos, e das nossas potencialidades.

Não quero ser esse homem-instituição. Não quero que os homens sejam esse homem-instituição, de sentimento castrado, de desejo cindido, de pensamento condicionado e de ego anabolizado. Que ainda não aprendeu a ser inteiro. Que é mais limite do que possibilidade. Que, julgando-se senhor de si e do outro, domestica a si mesmo.

“Por que você não vira homem?”. Eu não caibo nesse papel. Sou muitos pra ser um só. Prefiro ser um átomo solto no universo, e não o universo preso num átomo. Espero que os homens, não tendo de ser apenas esse homem-instituição, se libertem, pra que todos nós também nos libertemos. O homem livre ainda está em construção.

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Felipe Ferreira

Jornalista de formação. Publicitário de atuação. Gosta de escrever e brincar de ser várias gentes numa pessoa só. Não segue o script.